Com consumidores cada vez mais exigentes, conhecer a ciência do bem-estar animal já não é mais opcional, mas sim um requisito de mercado para não apenas se destacar no meio, mas prosperar na atividade pelos próximos anos.
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O que é o bem-estar animal?
Bem-estar animal foi definido pelo estudioso David Broom em 1986 como “o estado de um indivíduo em relação às suas tentativas de se adaptar ao ambiente em que vive”. Ou seja, podemos dizer que o animal pode encontrar-se em um estado de bem-estar que varia de muito bom a muito ruim, de acordo com fatores externos, sendo eles, nutrição, ambiente e saúde, além de comportamento e estados mentais.
Não podemos entregar bem-estar a um animal, mas podemos proporcionar boas condições para que esse estado se manifeste da melhor forma possível e como consequência se expresse em ótimos indicadores de produção.
No Brasil a preocupação com o bem-estar dos animais existe de forma regulamentada desde 1934 com o Decreto nº 24.645 do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) que foi alterado ao longo dos anos por novos decretos até o mais recente nº 10.468 de 2020 e a Portaria 365 de 2021, que são as principais legislações que norteiam a produção e abate dos animais de açougue.
Nas legislações brasileiras vigentes o bem-estar animal é obrigatório para a produção pecuária, sendo responsabilidade de todos da cadeia zelar pelos animais e as boas práticas envolvidas em todos os processos. Em outras palavras: o bem-estar é responsabilidade de todos, não apenas do frigorífico. Iniciando-se, assim, na fazenda desde a cria à terminação e embarque desses animais, passando pelo transporte e finalizando-se no momento do abate na indústria.
Por que trabalhar com bem-estar animal? Quais as vantagens?
Primeiramente porque os animais são seres sencientes, o que significa que eles possuem a capacidade de sentir. Os animais de produção, apesar de não serem animais racionais como os seres humanos, sentem, em sua maneira, dor, fome, frio e até mesmo alegria e tristeza. Logo, é ético respeitar algo que é inato do comportamento desses animais e que posteriormente serão transformados em alimento de qualidade para a população.
Outro ponto muito importante é a eficiência da produção. Animais em situação de estresse no dia a dia não se alimentam corretamente (deixam de ganhar o peso que deveriam), não expressam sua genética de forma efetiva, podem vir a ter problemas reprodutivos e ficam muito mais suscetíveis a doenças. Problemas de manejo e estruturas inadequadas (desde o curral, embarcadouros e veículos de transporte) também podem causar traumas, hematomas e fraturas que geram grandes perdas para o produtor.
Estudos realizados pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (ETCO), por exemplo, verificaram um alto percentual de incidência de lesões nas carcaças bovinas. Em 5133 carcaças avaliadas, foi constatado que 55% destas apresentavam pelo menos um hematoma grave, o que representou uma perda em torno de 400 a 600g de carne condenada por hematoma. Números que se tornam ainda maiores se tratando de lotes com muitos animais e de terminações com alto investimento e risco, como o confinamento.
Em outra pesquisa realizada por Ernani Andrade (2008) na região centro-oeste (Pantanal), um percentual de perdas ainda maior foi constatado: cerca de 84,3% das carcaças avaliadas apresentaram uma ou mais lesões graves, prejudicando grandemente o rendimento final.
Vale ressaltar o fator qualidade da carcaça. Animais estressados liberam um hormônio na corrente sanguínea denominado cortisol, que afeta diretamente a musculatura. O pH da carne de animais cronicamente estressados permanece alto mesmo após o abate e derivam uma carne seca, rígida, escura classificada como carne DFD. Essa carne não costuma ser interessante aos consumidores, possui menor valor e não é adquirida por muitos mercados externos.
As reações vacinais ou abcessos (formação de pus), muitas vezes ocasionados por contenção e forma de aplicação incorreta da vacina, além de mau uso e higiene de agulhas e utensílios utilizados e temperatura incorreta de armazenamento, são outra grande causa de perdas na carcaça que podem ser evitados com um manejo correto dos animais e boas práticas. Em um estudo da Embrapa (Oliveira et al., 2002) a média de peso relativa à retirada de tecido muscular da região do abcesso de 2.662 animais, oriundos de 22 municípios do Estado de Goiás, foi de 0,213 kg, ou seja, uma perda total de mais de 567.000 Kg.
Animais produzidos em condições de enriquecimento ambiental, como estratégias de conforto térmico, tendem a manifestar efeitos positivos do bem-estar animal: aumento no consumo de alimentos, ruminação eficiente, melhor digestão e aproveitamento dos nutrientes. Uma vez que o calor, mesmo para animais mais rústicos como os da raça Nelore e mestiços, é um fator estressante.
No estudo conduzido por Almeida et al. (2012) foram comparados 16.000 bovinos machos confinados em torno de 24 meses com e sem uso de sombrite nos lotes. Os lotes de animais confinados em piquetes com sombrite apresentaram maior ganho em peso diário (1,80 Kg) em relação aos animais sem sombrite (1,61Kg), diferença que pode até não parecer tão significativa em um primeiro momento, mas que importa considerando todo o investimento da produção.
Por onde começar aplicar o bem-estar no confinamento?
Para começar é preciso ter em mente que é um mito a ideia de que o bem-estar animal é trabalhoso e custa caro. Trabalho por trabalho, haverá em toda atividade pecuária onde se espera ter resultados significativos O que muda de processos que dão certo para outros que não, em sua grande parte, devem-se ao conhecimento técnico bem aplicado, ou melhor dizendo: à gestão.
O manejo eficiente dos animais envolve três elementos-chave: animais, instalações e pessoas. Sabendo disso, é necessário aplicá-los em cada uma das “liberdades dos animais”, os tópicos que regem o bem-estar animal em qualquer tipo de produção. São eles:
Estar livre de fome e sede (Nutrição)
Os bovinos devem ter acesso à água limpa e alimento adequado, portanto é importante respeitar a formulação exata da dieta estipulada pelo profissional especialista em nutrição para cada momento do confinamento, seguir corretamente os dias de adaptação e guiar-se sempre pelas leituras de cocho para fornecer o alimento na proporção orientada, dessa forma, evita-se o desperdício e os animais são nutridos de maneira correta.
O dimensionamento dos cochos e bebedouros também é um ponto de atenção, visto que se forem menores do que o necessário há chances de competição por alimento, brigas e animais de comportamento submisso (que são montados e/ou apanham) que podem não se alimentar ou ingerir quantidades significativamente menores da dieta.
A limpeza dos cochos e bebedouros deve ser realizada semanalmente, pois influencia no consumo e na saúde dos animais. Atentar-se para o local de escoamento da água (para fora dos currais, evitando a lama). A cada 8 a 10 cm de lama, a eficiência alimentar decresce entre 6 a 8%.
Estar livre de desconforto (Ambiente)
Os bovinos precisam estar divididos em lotes de tamanhos adequados. Lotes muito grandes (ideal até 100 animais, nunca ultrapassar 150) costumam favorecer brigas (comportamento de dominância) e dificultam a observação dos animais durante as rondas sanitárias e técnicas e o manejo quando necessário.
É importante que o espaço do curral seja adequado para a quantidade de animais, assim como o terreno possua boa drenagem e inclinação correta para escoamento da água (3 a 5%). Os buracos devem ser tampados, assim como as pedras e outros materiais soltos dentro dos currais (arame, madeira e, plásticos) precisam ser recolhidos, a fim de se evitar acidentes. Muito cuidado com estruturas quebradas, pontas e cantos vivos.
Durante a época da seca, períodos de umidade baixa ou alta incidência de sol, pode-se utilizar aspersores para o controle da poeira e conforto térmico. Para propriedades que desejam investir um pouco mais no quesito ambiência, árvores, sombrites e “escovões” podem ser uma boa opção para descanso e alívio de ectoparasitas.
Estar livre de dor, doença e injúria (Saúde)
Um manejo de recepção adequado aos animais, além das rondas sanitárias diárias, pode garantir maiores chances de prevenção, rápido diagnóstico e o devido tratamento em caso de eventuais problemas.
Ter liberdade para expressar os comportamentos naturais da espécie (Comportamento)
Primeiro é preciso entender quais são os comportamentos naturais dos bovinos para fornecer as melhores condições:
- Bovinos são animais gregários: vivem em grupos e têm facilidade de se movimentar desse modeo, uma vez que são presas na natureza e isso auxilia na sobrevivência. Portanto, têm dificuldade em filas indianas, espaços estreitos e apertados. É preciso calma para desembarcar ou embarcar animais, passá-los em seringas e bretes de contenção. A tendência do animal é sempre querer reconhecer o novo local, cheirar e após sentir segurança, se adequadamente manejado com a bandeira, ele se movimenta.
- A visão dos bovinos diferente da visão humana não distingue bem todas cores, possui uma amplitude bem maior (mais de 300º) e além da forma de enxergar binocularmente como a nossa (imagem formada com os dois olhos) também fazem forte uso da visão monocular, o que faz com que tenham problemas de profundidade. Dessa forma não distinguem bem sombras, buracos, mudanças bruscas de texturas, claro e escuro, precisando de mais tempo para processar as informações.
- O olfato bovino é extremamente poderoso e consegue perceber ferormônios de estresse (hormônios) liberados na urina, sangue e saliva, por exemplo. A partir dessa percepção alertam outros bovinos por vocalização (começam a mugir). Manter um manejo calmo, evita que animais estressados agitem outros animais que ainda serão manejados.
- Bovinos precisam ter espaço suficiente para se deitar e ruminar o alimento após sua ingestão.
- A memória dos bovinos é muito boa, além da sua capacidade de associação. Se são alimentados ou recebem algum reforço positivo após algum manejo nos currais, com o tempo a tendência é que seja muito mais fácil de manejá-los. Manejos e procedimentos ruins, mesmo desde a fase de cria, podem influenciar no temperamento desses animais pelo resto de sua vida.
- Bovinos são muito curiosos, possuem uma audição potente capaz de ouvir acima de 8000 Hz (medida de som). Aliado à visão e à sua particularidade a respeito da profundidade, estruturas de passagem nos currais e até mesmo embarcadores/desembarcadores com laterais fechadas diminuem muito as distrações e facilitam a movimentação (reduzindo uso de choque, acidentes e perdas). Gritos e barulhos de maquinário em momentos de manejo também podem ter reflexos negativos nos animais.
Pensando nesses pontos, todos os espaços e estruturas devem possibilitar que os animais se comportem e expressem seus sentidos ao máximo próximo ao natural.
Estar livre de medo e de estresse (Estados mentais)
Não são apenas agressões e sofrimento físico que precisam ser evitados. Os bovinos também não devem ser submetidos a condições que os levem ao sofrimento mental, o que desencadeia estresse, doenças e, principalmente, acidentes.
A movimentação dos animais, quando realizada, deve ser feita sempre com o uso da bandeira de ráfia para direcionamento do gado (nunca usada para cutucar ou agredir os animais) e o manejo deve ser realizado sem gritos, cachorros, ferrões ou paus.
O bastão elétrico deve ser evitado e utilizado apenas em situações onde outros manejos não-aversivos (bandeira, chocalho, uso da voz) não foram efetivos, e aplicado por apenas 1 segundo (encostar e retirar) na região dos posteriores (“popão”) evitando assim prejuízos para a carcaça e sofrimento animal.
O choque nunca deve ser aplicado em locais sensíveis como cabeça, base da cauda ou região genital. Vocalização prolongada é um forte indício de dor e desconforto, muita atenção!
Perspectivas para o bem-estar animal no confinamento
A cada ano novas tendências de mercado e consumo se instalam e com elas chega também a nossa necessidade de adequação. Tudo de início costuma ser trabalhoso, no entanto com planejamento, rotina, orientação e boa execução das atividades é possível alcançar grandes resultados.
Vivemos em um momento em que a sustentabilidade é uma pauta tanto para consumidores, indústrias e investidores, quanto enraizada no dia a dia da produção animal, como é o caso do bem-estar. Com isso, abre-se um leque de oportunidades para maiores rendimentos de carcaça, bonificações, diferenciação de produto, além de grandes certificações, possibilitando novos mercados e lucro.
Investir em bem-estar animal não é apenas sobre pensar no futuro, mas já pensar no presente de produções que percebem o quanto podem ser cada vez mais rentáveis, seguras e sustentáveis ao utilizar as boas práticas de produção.
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Autora
Jéssica Nascimento, Analista de Marketing Digital da Nutripura, é Zootecnista formada pela UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso). Atuou com controle e manejo em fazendas de gado de corte, acompanhamento de abate, além de supervisão de bem-estar animal em indústrias frigoríficas. Acredita em um agro sustentável e que a boa comunicação tem o poder de unir e abrir portas.